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Os Pássaros, 60 anos: acorde! Corvos bicam seus olhos

  “Ó profeta – disse eu – Criatura do Mal, e ainda assim profeta, ave ou demônio”. (“O corvo”, Edgar Allan Poe)
Nunca algo tão inofensivo na história do cinema, tirando as belas mulheres, pareceu tão aterrador. “Os pássaros” (1963), de Alfred Hitchcock fez isso. E fez mais. Mudou, para sempre, a ideia de que é preciso explicar o sentido de um filme. Se você já viu ou não, não importa, mas acorde! corvos bicam seus olhos!
O sucesso estrondoso de “Psicose” (1960), diria Hitchcock, fez com que ele imaginasse que o público queria algo mais forte ainda. 
A origem de “Os pássaros” nasce da ideia de que ele pretendia contar uma história de catástrofe, mas que ela envolvesse pessoas normais, comuns, e que suas vidas ordinárias fossem terrivelmente interrompidas.
Na entrevista que Hitchcock concedeu a Peter Bogdanovich (Diretor do provocador filme “A última sessão de cinema”) ele explicaria isso com outros termos, após analisar a obra de Daphne du Maurier, “The birds”, na qual o filme se baseia. 
Dizia ele: “Em outras palavras, estávamos dizendo: ‘Vejam. Todas essas pessoas inconsequentes as suas vidas transcorrem de modo bastante aborrecido, mas, de repente, surgem os pássaros. Agora sua equanimidade comparativa é perturbada’”. 

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A “equanimidade comparativa” (leia-se complacência, conformismo) é justamente uma das explicações para sua heroína, a belíssima Melaine Daniels (Tippi Hedren). 
A mãe de Melaine a abandonou aos 11 anos. Ela é filha de um proprietário de um grande jornal de San Francisco, suas ocupações parecem repetitivas e pueris, como fazer ações de caridade e ir à loja de pássaros onde encontrou Mitch (Rod Taylor), seu parceiro e amante na guerra contra as aves e contra ela mesma.
Contra ela mesma, porque a ideia é de que não só as vidas comuns das pessoas da pequena vila de Bodega Bay, onde os pássaros atacam, são viradas de cabeça pra baixo, mas de que a ordinária vida de Melaine sai do seu conformismo e se depara com um trágico desafio. Daí a ideia da heroína hitchcockiana.
Novamente Hitchcock dá a uma de suas mulheres o protagonismo do filme, seguindo o que fizera antes com Janeth Leigh em “Psicose”.
Mas se no filme anterior Marion Crane (Leigh) foge da cidade após realizar um roubo, em “Os pássaros”, Melaine sai da cidade com a desculpa de presentear Cathy, a irmã de Mitch, com dois “loverbirds”, dois periquitos.
A diferença não é apenas de intenção, mas de motivo, razão. Marion sucumbe à tentação da cobiça; Melaine sucumbe à tentação do amor. São pecados, mas pecados diferentes.
Melaine em sua chegada na vila logo sentirá essa mão do destino ao ser atacada por uma gaivota. Ainda sob os efeitos da grande cidade e do impacto do novo lugar, a professora (ex-namorada de Mitch) que a acolhe pergunta o que ela achou do povoado, e ela responde: “detestei!”.
Hitchcock aos poucos irá demonstrar como essas apreensões sobre a vida, sobre a realidade e sobre nossos pequenos mundos nem sempre são as únicas corretas, possíveis.
É o signo da catástrofe que está a espreitar, com asas, pendurado nos fios dos postes da pequena vila. 
O primeiro ataque massivo dos pássaros demonstra isso. Na casa de Mitch, o que era para ser um jantar de recepção se transforma, sob os olhares de reprovação da mãe à visitante, em caos quando pequenos pardais invadem a casa como uma nuvem de fumaça densa que desce da chaminé.
É a segunda prova de realidade para os habitantes da casa, mas, principalmente, para Melaine que, enquanto se mantém calma, observa a perda de controle da mãe de Mitch, a imagem aqui é de que se trata da bruxa má a amaldiçoar aqueles acontecimentos.  

 Naqueles acontecimentos a sequência do fazendeiro, encontrado pela mãe morto com os olhos arrancados pelos pássaros, proporciona uma nova aproximação. É quando a bela jovem da cidade se aproxima definitivamente daquela que poderia ser sua algoz. 
Um chá servido no quarto da mãe, após o pânico da cena de morte, aproxima esses dois polos da paixão de Melaine pelo filho e do medo de substituir a mãe e condená-la à solidão.
A sequência mítica e bíblica da morte do fazendeiro é uma abertura para uma nova realidade. Os olhos do fazendeiro se foram, mas são os olhos de Melaine que, para deterem os corvos do destino, devem se abrir. É um Édipo às avessas.
Essa caraterização do destino, quase mítica e quase mística, estará presente naquela que talvez seja a sequência mais famosa do filme. A sequência dos corvos pousados na frente da escola onde Cathy, a irmã de Mitch, estuda. 
O corvo é uma simbologia de morte e vida, felicidade e infortúnio e se tornará uma das imagens arquetípicas e massificadas com a qual pensamos sobre augúrio, predestinação, má sorte. A sorte da vila está a espreitar em todos os lugares. 
Farfalham as asas, grasnam assustadoramente as aves, gritam os medos, correm os moradores. Muitos, no mercado, não creem no que está lhes acontecendo. Como aquela “equanimidade comparativa” foi quebrada?
A incredulidade da “ciência”, simbolizada em uma senhora especialista em pássaros, só é derrubada pela realidade que se impõe na sequência no centro da cidade. Os pássaros voltam a atacar, e a ideia de Hitchcock se faz em toda sua força. Homens aprisionados, aves livres, ameaçadoras, violentas.
Hitchcock afirmaria sua intenção dessa perspectiva na famosa entrevista ao cineasta François Truffaut, “Hitchcock/Truffaut”, um dos mais importantes livros sobre cinema.  

 Ele relembra a sequência inicial na loja de pássaros, na qual Mitch ao capturar um pardal o recoloca na gaiola e diz: “recoloco você em sua gaiola dourada, Melaine Daniels”. Essa metáfora é reintroduzida na famosíssima parte em que Melaine ficará presa em uma cabine telefônica no ataque dos pássaros ao centro da cidade.
Essa seria a prova de fogo da jovem, diz o diretor. Ela está presa, agora, em uma gaiola de infelicidade. As aves podem lhe ferir mais ainda, ela terá que acordar para um universo, um destino, que desconhecia.
O mundo não é feito apenas de vilas calmas e vidas rotineiras. A sorte, o augúrio e o imponderável dele também fazem parte. Não importa porque os pássaros atacaram.
Não por acaso, na sequência final, o aspecto de sonho e fantasia é preponderante. Ele ocorre no sótão, lugar onde se alojam coisas não rotineiras, ou coisas que deixamos para trás. Atacada, Melaine desfalece suspirando pelo nome de seu amado.
Não há mais nada a fazer sobre o augúrio consumado. A família atravessa um caminho onde os pássaros, como a sorte, o destino, estão a espreitar. Entrar no carro e deixar isso para trás talvez seja a única possibilidade de continuar.
Ao partirem, em primeiro plano está a imagem assustadora do lugar repleto de aves, ao fundo, está o carro, a vida, que segue um novo caminho. 
Não deixa de ser instigante a ideia do diretor de brincar com um outro fim para o filme no qual, na fuga do juízo final de Bodega Bay, os passageiros do carro olhassem para a ponte Golden Gate e ela estaria coberta de pássaros. É um mundo como desafio interminável, sem complacência.
Complacência. Esse seria o tema do filme para Hitchcock.  Para ele, é sob as dificuldades que as pessoas tendem a se sair melhores. Nem sempre se deve considerar a opinião de artistas sobre suas obras como verdade absoluta.
Mas, nesse caso, Hitchcock está dizendo, acorde! corvos bicam seus olhos.Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.relivaldopinho@gmail.com

Fonte: DOL – Diário Online – Portal de NotÍcias 

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